Desde miúda que nunca gostei da Páscoa. Sempre achei uma época triste. Ou talvez já fosse uma premonição.
Era a segunda noite que dormia no quarto com ele para o auxiliar cada vez que precisava de se virar e não conseguisse. Eu não consegui dormir. A respiração dele era sonante mas regular. Eu tinha medo que ele acordasse e eu não o ouvisse. A última vez que acordou, acordou sobressaltado, fez-me uma pergunta. Tentei sossegá-lo com a resposta. Disse-me que não queria adormecer novamente. Que nunca mais acordaria. Sossegue-o. Pedi-lhe que dormisse. Que descansasse. Que era claro que acordaria. Precisávamos tanto dele. Ele tinha que acordar. Mais calmo, adormeceu.
Foi a última vez que lhe ouvi a voz.
Acordei. Estava um dia de sol. Deixei-o dormir até à hora de tomar a medicação. De 5 em 5 minutos ia vê-lo. Estava calmo mas sempre com a respiração afogante.
À hora de almoço tentei acordá-lo. Não consegui. Depois seguiram-se uma série de acontecimentos que ainda hoje me passam pela cabeça todos os dias que penso naquele dia.
A ambulância, os socorristas, eu com ele na ambulância, a mana Rita que foi ter ao hospital, o desespero nos olhos de quem lhe procurava um pulso estável. O cuidado de sairmos sem grandes alaridos para protegermos a minha mãe.
Entrou no hospital. Vieram preparar-nos para o pior. Um médico. Não sei se era alto ou baixo, magro ou gordo.
Pouco tempo depois, que me pareceu uma eternidade, chamaram-nos. Ele tinha partido. Sem grande sofrimento segundo eles. Depois de 11 meses de grande sofrimento, segundo o que vivi e presenciei. Sei que nos quiseram poupar mas mentiram. Ele sofreu tanto...
Entrámos para uma sala onde ele estava calmo. Sorria como sempre. Sem aquela respiração que nunca vou esquecer. A médica ficou ali connosco. Depois saiu. A mana chorava, eu não conseguia.
Tinha chorado 11 meses, para mim. Todos os dias uma notícia pior. Sem me pouparem porque era "futura colega". Ele que era o homem que mais amei.
Saí. Estava um sol que "humilhava" o meu sofrimento. Lembro-me onde parei para lhe ligar. À minha madrinha, sua irmã. Lembro-me das suas palavras. Do seu desânimo disfarçado na voz que tentava manter calma. Não sei o que terá chorado mas lembro-me de ter pensado que também ela estava a sofrer muito. Eram 2 irmãos exemplares.
Viemos para casa. Vinha preparada para calmamente falar com a minha mãe. Não nos deram essa oportunidade. Já estava vestida de preto e com umas 50 beatas em volta. Lembro-me de pensar que não a queria toda de preto. Ele nunca quereria isso. Lembro-me de não ter forças para perguntar afinal o que era aquilo.
O resto do dia foi passado a tratar do que foi preciso.
À noite "falei" com o Pedro pela net porque ainda não nos conhecíamos pessoalmente. Sei que me senti um pouco apoiada mas lembro-me de pensar que ninguém podia compreender a minha dor naquele momento.
Depois disso, sentei-me numa cadeira cá fora. Vi uma estrela cadente. Nunca na minha vida tinha visto uma ali perto de casa. Entendi que era ele que se despedia de mim. Pedi um desejo, naquela noite em que muito do que desejava se tinha perdido ali.
Perdi ali a minha melhor parte. Perdi um sorriso alegre e cúmplice. Perdi as piadas ditas daquela maneira. Perdi as viagens que fazíamos. As festas intermináveis com amigos que gostava de fazer. Perdi os abraços, os conselhos, até as brigas. Os telefonemas. O orgulho que tinha em nós. E o riso.
Perdi um amigo, um grande amor, um pai.
E o sábado de Páscoa (14 de Abril) é para mim o pior dia do ano. Tal como foi há 6 anos atrás.