sábado, abril 07, 2007

Sábado de Páscoa de 2001

Desde miúda que nunca gostei da Páscoa. Sempre achei uma época triste. Ou talvez já fosse uma premonição.
Era a segunda noite que dormia no quarto com ele para o auxiliar cada vez que precisava de se virar e não conseguisse. Eu não consegui dormir. A respiração dele era sonante mas regular. Eu tinha medo que ele acordasse e eu não o ouvisse. A última vez que acordou, acordou sobressaltado, fez-me uma pergunta. Tentei sossegá-lo com a resposta. Disse-me que não queria adormecer novamente. Que nunca mais acordaria. Sossegue-o. Pedi-lhe que dormisse. Que descansasse. Que era claro que acordaria. Precisávamos tanto dele. Ele tinha que acordar. Mais calmo, adormeceu.
Foi a última vez que lhe ouvi a voz.
Acordei. Estava um dia de sol. Deixei-o dormir até à hora de tomar a medicação. De 5 em 5 minutos ia vê-lo. Estava calmo mas sempre com a respiração afogante.
À hora de almoço tentei acordá-lo. Não consegui. Depois seguiram-se uma série de acontecimentos que ainda hoje me passam pela cabeça todos os dias que penso naquele dia.
A ambulância, os socorristas, eu com ele na ambulância, a mana Rita que foi ter ao hospital, o desespero nos olhos de quem lhe procurava um pulso estável. O cuidado de sairmos sem grandes alaridos para protegermos a minha mãe.
Entrou no hospital. Vieram preparar-nos para o pior. Um médico. Não sei se era alto ou baixo, magro ou gordo.
Pouco tempo depois, que me pareceu uma eternidade, chamaram-nos. Ele tinha partido. Sem grande sofrimento segundo eles. Depois de 11 meses de grande sofrimento, segundo o que vivi e presenciei. Sei que nos quiseram poupar mas mentiram. Ele sofreu tanto...
Entrámos para uma sala onde ele estava calmo. Sorria como sempre. Sem aquela respiração que nunca vou esquecer. A médica ficou ali connosco. Depois saiu. A mana chorava, eu não conseguia.
Tinha chorado 11 meses, para mim. Todos os dias uma notícia pior. Sem me pouparem porque era "futura colega". Ele que era o homem que mais amei.
Saí. Estava um sol que "humilhava" o meu sofrimento. Lembro-me onde parei para lhe ligar. À minha madrinha, sua irmã. Lembro-me das suas palavras. Do seu desânimo disfarçado na voz que tentava manter calma. Não sei o que terá chorado mas lembro-me de ter pensado que também ela estava a sofrer muito. Eram 2 irmãos exemplares.
Viemos para casa. Vinha preparada para calmamente falar com a minha mãe. Não nos deram essa oportunidade. Já estava vestida de preto e com umas 50 beatas em volta. Lembro-me de pensar que não a queria toda de preto. Ele nunca quereria isso. Lembro-me de não ter forças para perguntar afinal o que era aquilo.
O resto do dia foi passado a tratar do que foi preciso.
À noite "falei" com o Pedro pela net porque ainda não nos conhecíamos pessoalmente. Sei que me senti um pouco apoiada mas lembro-me de pensar que ninguém podia compreender a minha dor naquele momento.
Depois disso, sentei-me numa cadeira cá fora. Vi uma estrela cadente. Nunca na minha vida tinha visto uma ali perto de casa. Entendi que era ele que se despedia de mim. Pedi um desejo, naquela noite em que muito do que desejava se tinha perdido ali.
Perdi ali a minha melhor parte. Perdi um sorriso alegre e cúmplice. Perdi as piadas ditas daquela maneira. Perdi as viagens que fazíamos. As festas intermináveis com amigos que gostava de fazer. Perdi os abraços, os conselhos, até as brigas. Os telefonemas. O orgulho que tinha em nós. E o riso.
Perdi um amigo, um grande amor, um pai.
E o sábado de Páscoa (14 de Abril) é para mim o pior dia do ano. Tal como foi há 6 anos atrás.

6 Comments:

At 7/4/07 14:03, Blogger Joca said...

Perdi um irmão 1 ano mais novo que eu, num acidente de viação.
Nunca se podem comparar as situações, mas uma coisa é comum: a saudade!

Boa Pásoa, mesmo assim!

P.S.: gosto muito do teu Blog. Escreves muito bem!
Ah: e a Mariana é giríssima!! :)

Joca

 
At 7/4/07 16:06, Blogger Tia Moky said...

Aquele abraço.

 
At 8/4/07 11:11, Blogger Helena said...

nunca senti uma dor assim...nunca sei o que dizer.
uma beijoca

 
At 8/4/07 11:29, Anonymous Anónimo said...

Lembro-me desse dia como hoje, de estar em Tomar e a Vera ligar-me a dar a triste notícia. De eu pedir aos meus pais para irmos imediatamente a vossa casa. De chegar e ver a sala cheia de gente que flutuava à volta da tua mãe. E de chegar ao pé da tua irmã, na cozinha, e ficar em silêncio abraçada a ela. Do meu pai que, apesar de ter estado umas duas ou três vezes com o teu pai, estava triste e chocado porque houve uma afinidade instantânea entre ambos. Sem dúvida, o teu pai é inesquecível. Um beijinho...

 
At 8/4/07 18:35, Anonymous Anónimo said...

a morte para quem fica não é mais do que uma estupidez da vida, uma lambada com vítimas e sem culpados...
deixa-nos uma saudade, uma perda, um buraco de vazio, a palavra que tanto queríamos ter dito...

prefiro ter uma ideia de continuidade, de algo para alem do escuro, já que falam (Bíblia) que o escuro representa as trevas, o fechar os olhos à vida e abrir a alma para a Luz, a evolução da alma.

Prefiro porque deixa-nos um sentimento de que partir para outra dimensão, melhor, prefiro pensar, imaginar, crer, enfim...

Mas preferiria também não sentir a dor dessa saudade terrena, do estar como seres vivos na terra, de rirmos juntos da pessoa que amamos e que partiu.
O Tempo passa, ajuda-nos a olhar para o futuro mais do que para o passado.
Mas isso não quer dizer que iremos perder tudo por que passámos, não, significa que precisamos do passado para acreditarmos em nós e fazermos melhor por nós, e para orgulharmos quem amamos e que fechou a porta "desta vida".

Um dia, quem sabe, Patrícia não irás estar com ele mais por mais uma vida?

Jinhos muito grandes nessa tua saudade eterna

 
At 9/4/07 18:34, Blogger chicharrinha said...

tendo lido os posts das três manas, sinto alívio ao ler o teu - porque não me largo da capa profissional, sei sempre que é melhor lidar com a dor chorando, aprender a crescer com ela falando. e tu fizeste-o como mais ninguém que tenha ouvido até hoje falar do teu pai. No dia do funeral cheguei tarde (em evitamento, como sempre) e ouvi um raspanete do meu pai, que não entendeu. Também não lhe expliquei, porque só iríamos "chocar-nos" na consternação de ambos. Mas percebo hoje que, assim como ele precisou estar presente a cada minuto para se despedir do sobrinho mais alegre (e aquele que lhe tinha uma idade mais próxima...), eu precisava de o recordar nas uas gargalhadas. Abracei quem entendi que devia, e recordo hoje, como em vida do teu pai, desde o almoço de ervilhas que me cozinhou (ele ou a tua mâe, já não me lembro) no verão dos meus 4 anos, em casa do tio Emídio, e da cumplidade próxima dela com a tua mâe, até ao dia (igualmente com eles) em que me atirou para a piscina, rindo à gargalhada, primeiro, e aflito depois, convencido que estava que eu sabia nadar. Porque se queres mesmo saber, cada pessoa que morre vivie no meu afecto nas recordações que dela/dele guardo, mesmo com dor.
um beijinho.
belinha.

 

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