segunda-feira, outubro 23, 2006

Dor

Já estão os dois a dormir. Não consigo adormecer, sinto-me especialmente triste, hoje.
Fins de semana assim, costumavam ser de "festa". O Cirilo ficava até mais tarde para ver os derbys. Jantávamos normalmente em casa da minha mãe todos juntos. E lembro-me de pensar que um dia queria ter uma família assim grande com 2 ou 3 filhos para que as noites fossem tão animadas como eram aquelas. Lembro-me que costumávamos rir e às vezes até "discutir" quando as decisões dos árbitros não eram as que favoreciam o nosso clube.
Tenho saudades da sexta feira, quando via o Peujeot à frente de casa da minha mãe, sinal que o Cirilo já chegara. De ver a minha irmã feliz porque finalmente estavam de fim de semana juntos. Do cheiro a bolos ou a doces que ela carinhosamente preparava para ele. Do "então?" com a pronúncia nortenha que o caracterizava. Do cumprimento quando chegava. Das noites em que fingia que me chatevava de ver o Pedro e ele sempre agarrados à Playstation. De o ouvir defender o Benfica com "unhas e dentes". De me picar quando ele dizia mal do Sporting. De ver a"Bola" e o "Público" em cima da mesa. De o ver a brincar com a Mariana. De esperar por ele quando queríamos sair e ele demorava eternidades.
Porque era das pessoas mais educadas e correctas que conheci. Porque namorava há muitos anos com a minha irmã. Porque vinha cá fim de semana sim, fim de semana não e passávamos algum tempo juntos. Porque passámos também férias juntos. Porque era único e com tanto para nos dar.
Relembro muita vez uma manhã que fomos para casa da minha mãe e a minha irmã levou-lhe a Mariana para "brincarem". Virou-se para minha irmã e disse-lhe: "Tão castiça". Ele gostava da minha filha e tenho a certeza que ela gostaria muito dele. Ele, o tio Cirilo. Que não voltará a falar com ela , a rir-se para ela ou a brincar com ela.
A morte mais uma vez entrou nas nossas vidas. Mais uma vez perdemos assim. Mais uma vez teremos que aprender a rearranjar os nossos dias.
Um dia destes um amigo nosso foi para o hospital em estado grave. Fiquei preocupada mas percebi que não estava tão preocupada como seria normal. E comecei a analisar o porquê. Teria ficado insensível? Não. Percebi que estou a viver o nosso luto. O meu luto. À minha maneira. A chorar a minha dor e ainda sem capacidade para olhar para as outras dores. Porque esta ainda dói muito.
Ainda estou na fase da revolta. Queria saber mais. Queria saber afinal qual foi o microorganismo responsável por tanto sofrimento. Se fizeram tudo o que podiam. Se lutaram pela vida dele como lutariam pela sua própria. Se respeitaram a sua vida como única. Se não havia mesmo hipótese de o salvar.
E relembro muita vez o último sorriso que lhe vi. Quando ainda pensava que havia solução. O último telefonema que lhe fiz. As últimas palavras que me disse.
E tenho tantas saudades...

3 Comments:

At 23/10/06 22:17, Anonymous Anónimo said...

Ola

como comprendo a tua dor , tb eu perdi um amigo há uma semana e pelo que percebo da mesma forma.

Beijos de coragem
Paula
http://www.portaljunior.com/journal.php?m=display&u=868

 
At 27/10/06 00:16, Anonymous Anónimo said...

Por mais fria que nos possa parecer esta frase, é a única que me lembra a saudade eterna:
a vida é uma mera passagem...

Mas que custa a passar a dor da saudade a quem fica? ai pois custa...


Força!!!

 
At 5/11/06 11:35, Anonymous Anónimo said...

Também estou ainda nessa fase. De revolta. De interrogação. Mas interrogo-me não só se os outros fizeram tudo o que deviam, se deram à minha mãe toda a juda que podiam (sei que não, sinto que não, sinto que a burocracia pesou sempre muito e poucos foram os que fizeram realmente esforço para a ultrapassar), mas se eu fiz tudo o que podia e devia. À medida que o tempo passa vou encontrando mais motivos para me massacrar, alimento o meu complexo de culpa e lembro-me dos últimos dias que passei com ela, do seu estado de fraqueza, da minha atitude de negação e de tentar que lutasse... o vazio que aparece nas nossas vidas vai sendo preenchido, concerteza, mas esta dor parece não ter fim.

 

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